sábado, 31 de julho de 2010

Leopardos irrompem no templo.


Sempre fico com o pé atrás quando se trata de literatura encomendada, dessas que uma editora convoca um número de escritores pra escrever sobre determinado tema. Uma dessas brincadeiras foi a coleção Literatura ou Morte, em que escritores foram convidados a escrever romances sobre outros escritores. A Moacyr Scliar coube o grandioso Franz Kafka. Tarefa difícil, que Moacyr cumpriu com muito talento. Criando uma situação verdadeiramente kafkiana, a estória que ele se propõe a contar prende o leitor da primeira a última página, como todas as obras de Kafka. Inusitadas, as situações vividas por Ratinho, o personagem principal, são tão inquietantes como as vividas pelos personagens de Kafka, quando um dia um homem acorda inseto, ou quando um dia um homem é acusado sem saber exatamente de que. Kafka aparece na estória de Moacyr, mas mais do que retomar o escritor, o autor de Os Leopardos de Kafka brinca justamente com o modelo de narrativa kafkiano. Uma literatura que dialoga com a própria literatura, com um escritor consagrado, com a arte do fazer literário, e que mostra que mesmo sob encomenda, Moacyr é dono de uma narrativa instigante, intrigante, e arrebatadora. Recomendo a leitura. No entanto, antes de irromper no templo dos leopardos, o leitor ganha se conhecer a escrita kafkiana; dessa forma ela será capaz de entender melhor o dialogismo que Scliar propôs em sua literatura de encomenda.

terça-feira, 27 de julho de 2010

Angustiado


Não é, mas Angústia, de Graciliano Ramos, poderia ser uma estória banal, que ainda assim, se o narrador utilizasse a mesma linguagem que utiliza para narrar sua estória, ela continuaria figurando entre os livros mais interessantes da literatura luso-brasileira. Comecemos então por ela, a linguagem. Três tempos compõe a narrativa, um tempo presente, que é quando o livro começa; um tempo que remete ao principal feito da narrativa: o amor de Luís por Marina e as conseqüências desastrosas dessa paixão; e um terceiro tempo: a infância do narrador no interior de Alagoas. Graças ao manejo da linguagem pelo narrador, esses três tempos se misturam na narrativa de maneira fascinante. Narrado em primeira pessoa, os pensamentos de Luís se constituem ferramenta fundamental para esse resultado primoroso do trabalho com a linguagem. O que chega ao leitor são os dilemas desse homem deslocado numa capital, e que não consegue se desvencilhar totalmente de sua vida no interior. Isso fica claro quando a narrativa principal é “interrompida” pelos devaneios do narrador que busca sempre relacionar o presente com seu passado. E não se esgota aí, mas tenho medo de acabar revelando surpresas sobre o enredo da estória e assim estragar a leitura de quem me lê e ainda não se aventurou pelas páginas de Angústia.
Outro aspecto importante é o argumento da obra. Como eu mencionei, se Angústia apresentasse um argumento banal, mas conservasse a linguagem que o autor emprega, ainda assim seria uma obra interessante. No entanto, o argumento é dos mais fascinantes. O personagem principal atinge proporções dostoievskianas quando narra a autopunição que ele se impõe no final da narrativa. E não somente ele, os personagens são de uma simplicidade que cativam: Dona Vitória e seu papagaio, seu Ivo, Dona Rosália e o marido que o narrador nunca vê o rosto, dona Adélia, Julião Tavares, e claro, Marina, com seus cabelos de fogo. Mas a simplicidade está apenas nos personagens, no estilo de vida que levam. Sua caracterização é complexa, se misturam na pena do narrador quando este mescla os tempos e compara pessoas e situações de sua vida presente com a passada.
Leitura obrigatória, Angústia, de Graciliano Ramos, não é apenas a estória de um homem e sua condição em uma capital de um determinado país, em um determinado momento. É uma estória atemporal pois traz a essência humana, essa angústia que trazemos cá dentro, mas em um nível que para o narrador dessas memórias culminou no desfecho narrado na obra. Não há como não ler e não se sentir angustiado. Para os que se aventurarem pelas páginas desse mestre da literatura brasileira, boa leitura e boa angústia pra vocês.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

O comentário que virou postagem

... o melhor e mais genial escritor jamais conseguirá passar pro papel a intensidade de um sentimento. Somos nós que ao ler algo, nos identificamos, e projetamos nas palavras lidas aquilo que carregamos cá dentro.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Das negativas em Memórias Póstumas.


Já muito se escreveu sobre Machado de Assis e sua obra. Hoje me atrevo a resenhar um pouco sobre a minha terceira leitura de Memórias Póstumas de Brás Cubas. Longe de querer esgotar os temas que a obra levanta, quero antes de tudo imprimir a minha impressão nessa terceira leitura, a impressão das negativas. O último capítulo leva esse título: das negativas, mas elas permeiam o livro todo, desde o começo até a última página. Não esqueçamos que as Memórias começam dedicadas ao verme que primeiro roeu as carnes do autor, e terminam reforçando a miséria da vida, quando junto com os saldos negativos, o autor lamenta (ironicamente) não haver tido um filho pra transmitir esse legado mísero. O livro pode ser lido como uma crítica ao ser humano, e de fato ele é, mas nessa minha terceira leitura eu enxerguei além. Criticar o ser humano é tendência em toda a obra do Machado, desde sua fase romântica. Em Memórias Póstumas ele vai além, e critica a própria vida. Na condição de morto e livre da hipocrisia e de outros sentimentos que regem a existência humana, o narrador Brás Cubas nos mostra um quadro ácido da vida. O amor é questionado em figuras como a personagem Marcela, que o amou por quinze meses e onze contos de réis. A vida é questionada em existências como a de Dona Plácida. A vida é pintada sem as cores do romantismo, como quando o filósofo Quincas Borba expõe o Humanitismo ao ver dois cachorros brigarem por um pedaço de osso. A vida é pintada com pinceladas cruéis. E é ela a principal personagem dessas memórias. Desde o começo, o narrador quer falar de vida, e já começa ironizando a sua, na dedicatória do livro. Com sua pena por vezes ácida, por vezes cruel, por vezes assustadoramente real, Machado de Assis nos faz enxergar a vida sem os floreios que costumamos dar a ela para tentar aliviar a nossa condição de reles mortais. A obra, antes de uma crítica a sociedade, ao ser humano, a diferença de classes, ao amor de conveniências, e a tantas outras críticas possíveis dentro do livro, é uma crítica a vida, essa vida que se apresenta tão deliciosa a nós, mas que mesmo assim, está cheia de negativas. A principal delas? A morte.