quarta-feira, 29 de setembro de 2010

A metamorfose - Franz Kafka


O que me fascina na literatura são os mundos possíveis que ela é capaz de criar. Eu disse possíveis? Dormir humano e acordar inseto, sabemos, é algo que na vidinha nossa de cada dia não cabe. Na literatura cabe. Reformulemos então a frase. O que me fascina na literatura são os mundos (im)possíveis que ela é capaz de criar. A Metamorfose, de Franz Kafka, talvez seja o exemplo mais apropriado. Em uma narrativa que prende o leitor desde a primeira frase, a estória do homem que se transforma em um inseto fascina por sua estranheza. É uma estória que incomoda, que perturba. Gregor Samsa um dia se descobre inseto, e longe de desesperar-se, trata aquilo como se fosse um sintoma de uma doença qualquer, como ter apanhado uma gripe, por exemplo. No entanto, pelo menos pra mim, a genialidade desta obra está em como mostrar uma realidade possível e existente através de um fato absurdo e inconcebível no nosso universo. A metamorfose de Gregor acarreta mudanças não apenas para ele em sua condição física. Todos ao seu redor se metamorfoseiam com ele. Foi preciso que Gregor se transformasse pra que a família, antes acomodada e sustentada por ele, passasse também por um processo de transformação. Mais do que a estória de um homem que acorda inseto, a novela de Kafka nos mostra como somos transformados pelo que nos rodeia, pelo que nos atinge. Adentrar por esses mundos por vezes obscuros que a literatura é capaz de criar nos ajuda a entender melhor a nossa condição. E se somos transformados pelo que nos rodeia, que a literatura seja capaz de proporcionar as metamorfoses de que necessitamos.

sábado, 25 de setembro de 2010

Admirável Mundo Novo - Aldous Huxley.


Diferente do que sempre faço, ao invés de escrever uma resenha sobre o livro que acabo de ler, dessa vez eu comentarei algo que minha última leitura suscitou em meus modestos pensamentos. Depois de ler Laranja Mecânica e 1984, estava faltando o romance que junto com os outros dois citados fecha a santíssima trindade da literatura de ficção científica: Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley. O livro é bom. E dele direi apenas isso. O assunto que me faz escrever, no entanto, é a diversidade de questões que a obra levanta a medida que avançamos na leitura. Temos descrita uma sociedade estabilizada, em que homens e mulheres são concebidos em série e para um determinado fim. O que para mim pareceu assustador é que não estamos tão longe disso. Há algum tempo, as humanidades foram tendo cada vez menos espaço nos currículos escolares. O que isso significa? Que a música, a literatura, a arte de maneira geral teve que ceder espaço para disciplinas que visam formar profissionais qualificados para determinados tipos de mão-de-obra. Resumo da ópera? Um estudante de medicina, por exemplo, não precisa mais ler a Ilíada ou Shakespeare, ou Machado de Assis (para isso os cursinhos imprimem resumos e mais resumos), não precisa mais descobrir suas aptidões artísticas, que desenvolveriam um lado mais humano, não precisam apreciar um Picasso, nem se encantar com os poemas de Neruda, nem ouvir uma sinfonia de Beethoven. Um estudante de medicina precisa unicamente cortar, costurar e receitar. Não estou desmerecendo o trabalho dos médicos, longe de mim, que respeito todas as profissões. O que quero dizer é que caminhamos rumo a uma sociedade tão cruel em que perder um ano da vida por não ter passado no vestibular parece algo sacrílego, quando na verdade pode ser saudável. Não existe uma idade pra se ingressar em uma profissão, mas o tempo todo somos cobrados e pressionados a passar o quanto antes em um vestibular, em cursar uma faculdade no menor tempo possível, e a pegar o diploma e morrer trabalhando, se a aposentadoria não chegar antes. Estamos sendo criados, como os personagens do livro, para desempenhar um papel puramente político e econômico na sociedade, e ponto final. Carpe diem? Ora, vivemos em um mundo em que aproveitar o dia é ter trabalhado e conseguido cumprir as metas pra poder comprar aquele televisor, e mais aquela roupa, e mais aquele telefone novo. Shakespeare já não está cabendo no nosso mundo. Machado tem se tornado uma voz distante no tempo. Viver é estar formado aos vinte e poucos anos, desempenhando a função que nos foi delegada. E de preferência nunca estar sozinho, pois a solidão nos faz descobrir quem realmente somos. Não pensemos em nada, não pensemos na vida, nem na morte, nem na arte, nem façamos grandes questionamentos... Aceitemos tudo e façamos parte desse mundo, desse admirável mundo novo.

domingo, 19 de setembro de 2010

Macunaíma - Mário de Andrade


Uma verdadeira revolução na linguagem literária, Macunaíma, de Mário de Andrade, é desses livros deliciosos de ler. Desses que se você estiver lendo no ônibus vai passar vergonha, porque não irá conseguir conter o riso diante dos desconhecidos que certamente irão te olhar como se você fosse um louco. A estória do herói sem nenhum caráter é povoada por mitos indígenas que fazem parte do folclore brasileiro, e todos eles são divertidíssimos. Além desses mitos que já existiam e que graças ao produto de sua pesquisa o escritor conseguiu reuni-los na sua rapsódia, há também os mitos criados pelo escritor. Mário acrescenta aos mitos folclóricos da cultura brasileira os seus próprios, sempre com muito humor e por vezes de maneira irônica. Um texto que continua guardando seu frescor moderno. Uma leitura prazerosa e inovadora, onde se mesclam o brasileiro falado e o português escrito, num jogo interessantíssimo com as palavras. A meu ver, o verdadeiro grito de independência que o Brasil deu. Aqui o nacionalismo é presente sem ser xenófobo, consume apenas o que há de bom na arte estrangeira. No seu movimento antropofágico, a nossa arte conseguiu finalmente libertar-se dos modelos estrangeiros estabelecidos (já que a arte não se prende a modelos e formas), e se apresenta como uma arte vanguardista, que dialoga com o que há de mais interessante no mundo da arte. Macunaíma é uma brincadeira séria, um jogo difícil em que autor e leitor vão além da cumplicidade, vão experimentando juntos novas possibilidades na arte de narrar.

domingo, 12 de setembro de 2010

El amor en los tiempos del cólera - Gabriel García Márquez.


Um homem espera pelo grande amor da sua vida durante meio século. Durante meio século ele deseja que seu rival, o esposo de sua amada, morra, para que ele enfim possa viver a felicidade ao lado da eleita do seu coração. Isso nos soa como alguma obra da fase romântica, desses amores impossíveis que encontramos na literatura de José de Alencar ou de Bernardo Guimarães. No entanto, engana-se quem assim julga. O enredo descrito trata-se nada mais nada menos do que mais uma estória do Nobel Gabriel García Márquez. El amor en los tiempos del cólera é um romance com um argumento desses mais açucarados que a literatura pode conceber. Para quem conhece a escrita de Gabriel desconfia de que eu esteja falando dele mesmo. Mas é exatamente a escrita usada pelo escritor que faz desse argumento açucarado uma estória complexa e humana. No primeiro capítulo já ficamos a par de acontecimentos que, seguindo a linha do romance tradicional, seriam deixados para o final. Aqui não. O começo do livro traz Fermina Daza casada com Juvenal Urbino, mas algumas páginas depois se descobre que seu amor do passado foi Florentino Ariza e a partir disso o escritor nos presenteia com uma escrita capaz de colocar ordem no meio dessa desordem aparente. Como ele faz em Crónica de una muerte anunciada, em que já desde a primeira frase do livro anuncia que Nasar vai morrer, aqui também temos informações que antecipam o desenrolar da trama. O autor joga com o tempo, trabalhando-o de maneira não linear, e à medida que a estória avança, ele vai construindo sua fábula. Só alguém com uma escrita muito poderosa é capaz de tornar um argumento tão açucarado em um dos livros mais bem escritos da literatura latino americana. Para quem tiver tempo e disposição de percorrer as quase quinhentas páginas, fica a sugestão. Uma leitura encantadora. Uma visão peculiar do amor e seus sintomas.