sábado, 30 de janeiro de 2010

Memórias póstumas de Machado.

Machado bem poderia ter aprendido com Brás Cubas a arte da narração além túmulo.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Em Liberdade.


Tem se tornado cada vez mais freqüente: ficcionalizar pessoas e situações reais. Ficcionalizamos a guerra de Canudos, o descobrimento do Brasil, a guerra de Tróia, as grandes navegações portuguesas. Ao se olhar para a história da literatura constata-se que não é de hoje o hábito de tornar ficção uma situação real. Também muitos personagens que povoam o universo literário existiram num chamado mundo real. Basta citar Dante em sua Divina Comédia, colocando-se ele próprio como personagem de sua saga. Ou Camões que eternizou Vasco da Gama na sua epopéia que narra a saga dos portugueses em busca do caminho marítimo para a Índia. Não é de hoje que os escritores buscam no mundo real um ponto de partida para fazer arte. Dante chega a ir além, quando coloca criador e criatura dentro de uma mesma obra, afinal, ao percorrermos as páginas de sua Divina Comédia encontramos Odisseu (Ulisses) e também seu criador, Homero.
Jogar com as possibilidades literárias é algo que os escritores fazem há muito tempo. Mas o que acontece quando ficcionaliza-se o próprio universo ficcional? Não são raras as obras em que encontramos um dialogismo literário. Exemplos? Capitu, personagem de Machado de Assis, é na literatura brasileira a personagem mais retomada por outros escritores. Podemos citar Dalton Trevisan, Fernando Sabino, Ana Maria Machado, Domício Proença Filho, entre outros que novamente deram vida e voz a Capitu. Obras que dialogam com outras obras, escritores que dialogam com outros escritores. Como exemplo máximo de escritores que dialogam com outros escritores temos Em Liberdade de Silviano Santiago. Em Liberdade é uma ficção que se propõe a apresentar um suposto diário do escritor Graciliano Ramos a partir do momento em que este deixa a cadeia como preso político. Não se trata de narrar as memórias do cárcere, algo que Graciliano fez depois que esteve preso, mas sim, de materializar as percepções de um homem, de um escritor, de um intelectual que depois de um período de confinamento é posto em liberdade. Silviano Santiago ficcionaliza Graciliano Ramos, povoa o universo ficcional a partir de situações reais e dramáticas vividas por um dos mais importantes ficcionistas do nosso país. E o faz com uma maestria que lhe rendeu o prêmio Jabuti de melhor romance. Nessa ficção, Silviano nos apresenta um Graciliano maltratado, sofrido, angustiado, perdido. Temos o Graciliano homem, o Graciliano escritor, o Graciliano político, o Graciliano intelectual, e todas essas facetas compõem um Graciliano completamente humano. Ficcionalizando Graciliano Ramos, Silviano Santiago consegue tecer considerações sobre os rumos da literatura no Brasil, a condição do escritor no nosso país, e sobre a literatura de uma maneira geral. Nas páginas do suposto diário nos chegam as implicações da arte do fazer literário.
A maneira como se dá a construção da obra também é algo digno de comentário. O leitor está diante de um suposto diário escrito pelo escritor Graciliano Ramos, que é entregue a um amigo deste para que seja publicado 25 anos depois da sua morte. No entanto, por razões explicadas já no início da obra, o diário vai parar na mão de Silviano Santiago, que satisfaz o desejo do escritor e 25 anos após a morte de Graciliano publica suas primeiras palavras depois que é posto em liberdade. O leitor se encontra diante de um jogo. Cabe a ele aceitar o pacto ficcional e adentrar pelas páginas do diário acreditando que o diário foi escrito por Graciliano Ramos. Se não houver esse pacto, não há obra.
Em suma, Silviano Santiago consegue não apenas dialogar com outro escritor e com sua obra, mas também dialoga com as maneiras do fazer literário e com o próprio fazer literário. Em liberdade é romance, é crítica, é história, e é experimentação na arte de narrar.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

José Saramago e a estrutura social.


Escritor aclamado e premiado, José Saramago é dono de uma escrita contagiante. Ao se começar a ler qualquer um de seus romances o leitor é preso pela maneira singular que o escritor tem de narrar uma estória, e, seguramente, não deitará o livro sem aquela angústia que nos causa as suas inusitadas situações criadas. E acredito que empreguei adequadamente o termo 'inusitadas' para as situações criadas pelo autor. Uma epidemia de cegueira branca que se espalha por um país, ou um pedaço de terra que se desprende de repente do continente e começa a navegar sozinho não me parecem situações muito corriqueiras. Costumo definir literatura como um mundo possível, e nesse sentido, Saramago é mestre em criar possibilidades para os nossos mundos. Não apenas sua escrita milagrosa, inteligente e bem trabalhada, também os argumentos de seus romances são fascinantes.
Saramago não diz, sugere. E atrás de suas tramas bem articuladas se pode notar uma crítica feroz ao modelo de sociedade ao qual estamos estruturados. Em A Caverna essa crítica parece mais aberta, com Cipriano Algor lutando por sobreviver em um mundo que tudo descarta, um mundo onde ele parece não ter mais lugar, mais serventia. Retomando Platão, Saramago nos conta uma estória moderna de como vivemos em um mundo de ilusões, e de como a sociedade se estrutura para manter os indivíduos acorrentados ao modelo social e de vida já pré-estabelecidos.
Mas se em A Caverna essa crítica à estrutura social parece mais declarada, em outros romances ela é sugerida por detrás das tramas centrais das estórias. Em Ensaio Sobre a Cegueira, a estória sobre a epidemia de cegueira branca carrega implicações de como é frágil a nossa estrutura social. Em questão de dias o país se converte num caos. Saramago nos mostra uma sociedade frágil e fragilizada, caótica e egoísta, e trabalha os mais diversos instintos humanos nessa estória de luta pela sobrevivência em um mundo novo e desconhecido.
A estrutura social é novamente bagunçada quando se trata de A jangada de Pedra. Quando inexplicavemente a Península Ibérica se desprende da Europa, seus habitantes abandonam seus lares e partem em um êxodo sem rumo, eles próprios dentro da península, e a própria península, que parece navegar sem direção. Nessa atmosfera de falta de rumo, além da clássica pergunta: 'quem somos?, onde estamos?, para onde iremos?', a estrutura social entra em colapso quando se descobre que a península irá se chocar com outro pedaço de terra. Saramago descreve então o caos na sociedade, a situação das cidades, dos aeroportos, das estradas, dos hotéis, e mais importante, das pessoas.
E os exemplos não se esgotam aqui. Poderia ainda citar As intermitências da morte, quando esta para de trabalhar por puro capricho, levando a sociedade a uma situação mais do que caótica. Poderia também falar de Levantado do chão e sua temática do mais forte explorando o mais fraco, ou ainda a descrição hierárquica do Conservatório Geral do Registo Civil de Todos os Nomes. Em seus romances, seja abertamente, seja nas entrelinhas, Saramago nos chama a atenção para a estrutura social e sua fragilidade. Por isso deve ser leitura obrigatória. Mais do que situações inusitadas e mundos possíveis dentro de suas páginas, temos um retrato muito bem pintado do mundo em que estamos inseridos.