quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Grande Sertão: Veredas - Guimarães Rosa.


"Na extraordinária obra-prima Grande Sertão: Veredas há de tudo para quem souber ler, e nela tudo é forte, belo, impecavelmente realizado. Cada um poderá abordá-la a seu gosto, conforme o seu ofício, mas em cada aspecto aparecerá o traço fundamental do autor: a absoluta confiança na arte de inventar." - Antônio Cândido, o homem dos avessos.

Há de tudo para quem souber ler e cada um poderá abordar a obra a seu gosto. É o que diz Antônio Cândido acerca de Grande Sertão: Veredas. Difícil é, no entanto, eleger um aspecto da obra-prima de Guimarães Rosa diante dessa diversidade que o próprio título sugere. Um aspecto que me chama a atenção nesse universo é o narrador.
Narrador ou contador de histórias? A Narração do ex-jagunço Riobaldo em uma conversa com um interlocutor mudo relembra sua vida de jagunço, as lutas em que se envolveu, seu amor por Diadorim e sua dúvida sobre a existência do diabo e por conseguinte, do pacto feito com ele. Essa narração se desenvolve de uma forma um tanto casual e desordenada, flui como uma conversa, um relato, e à medida em que estórias vão sendo contadas uma trama maior vai se contruindo, crescendo.
Tendo Riobaldo como guia, o leitor vai oas poucos se aventurando na travessia do sertão, que nada mais é do que a vida, o mundo, metaforizados. O leitor vai sendo levado por vários rumos e com isso toma para si os questionamentos existenciais do narrador, sua busca existencial. Tudo isso porque o leitor é convidado a trilhar as veredas do grande sertão, a refazer esses caminhos novamente junto a Riobaldo. Riobaldo quer confessar o que foi sua vida, e confessa a seu interlocutor na tentativa de esclarecer sua grande dúvida a respeito da validade do pacto com o diabo. Ele quer a ajuda desse homem que ouve suas dúvidas metafísicas: "Quero armar o ponto dum fato, para depois lhe pedir um conselho." Mas a dúvida permanecerá até a última página do livro, pois não há registro da fala do interlocutor do começo ao fim; um recurso que confere dramaticidade à obra pois remete as dúvidas metafísicas unicamente a quem está conduzindo a estória, sendo portanto uma dúvida insaciável do próprio leitor, que tudo o que tem é a dúvida de Riobaldo e sua tentativa de tentar compreendê-la.
Riobaldo é um narrador-protagonista que não tem acesso ao estado mental das personagens, nem domínio de saber o que ocorreu em lugares onde ele não esteve. Não há a onisciência narrativa. Como já ficou dito, a narrativa do ex-jagunço é uma confissão do que ele viu e viveu, logo ele se limita apenas a narrar os fatos e a no máximo fazer algumas suposições sobre eles. Riobaldo não tem certeza sobre o pacto de Hermógenes com o diabo (como não tem certeza do seu próprio). O que ele nos narra é o que ouviu dizer a respeito de seu inimigo. O que temos é um narrador que nos conta a estória como ele a percebe. A estória nos chega com as dúvidas, as incertezas, as crenças, as percepções, os sentimentos e os pensamentos do ex-jagunço. Esse recurso narrativo é responsável por causar certa ambiguidade no leitor sobre o mistério que é Diadorim. Como é Riobaldo quem narra ,a verdade sobre o verdadeiro sexo de seu parceiro só é descoberta quando ele próprio a descobre. Não existe um narrador que nos revele o segredo no início ou no meio da obra pois estamos sendo conduzidos por Riobaldo nessa estória que ele refaz, que ele insiste em reviver.
Outro aspecto que gera ambiguidade no leitor por conta desse recurso é o momento em que o ex-jagunço faz o seu suposto pacto om o diabo. Toda a cena é descrita do ponto de vista de Riobaldo, tudo nos é tranmitido conforme as suas percepções, e como suas percepções sobre o fato são incertas, incerta também são as nossas, como leitores.
Mas não é só às personagens e às situações que esse recurso narrativo confere dramaticidade à obra. O mesmo acontece nas descrições dos espaços. No plano geográfico, as narrações de Riobaldo tornam o cenário flutuante. O Liso do Sussuarão, por exemplo, é descrito pelo ex-jagunço de tal forma que parece intransponível. Mas de repente já não o é, porque Riobaldo ultrapassa a realidade geográfica e a transforma, na medida em que vai ele próprio aos poucos atravessando o Sussuarão.
Com tudo isso, Riobaldo não se mostra apenas um contador de estórias, mas também um exímio narrador. Seu discurso se faz interessante, tão interessante a ponto de seu interlocutor escutá-lo ao longo das mais de 500 páginas do livro. Riobaldo sabe como conduzir sua história, sabe como "armar o ponto dum fato". Toda essa técnica narrativa empregada por Guimaraes Rosa faz de Riobaldo um dos narradores mais interessantes da literatura brasileira. No final, tudo o que o leitor tem são os mesmos questionamentos de quem narra suas memórias, suas dúvidas, suas percepções, seus sentimentos. No final, tudo o que o leitor pode fazer é levantar hipóteses, fazer perguntas. Mas devido a maneira como a narrativa é conduzida, o leitor nunca será capaz de respóndê-las. É assim que se faz boa literatura.

domingo, 19 de dezembro de 2010

O Assassinato E Outras Histórias - Anton Tchekhov.


É difícil para mim escrever sobre o Tchekhov. Este foi o meu primeiro contato com sua literatura, e quem já leu Anton Tchekhov sabe da densidade de sua escrita. Não gosto de comparar escritores, pois cada escritor (bem como cada obra) é único, tem seu estilo, sua escrita, mas confesso que ao ler o escritor russo, o nosso brasileiríssimo Machado de Assis me vinha muito à mente. Assim como Machado, encontramos na obra de Tchekhov (pelo menos na antologia de contos que li) uma crítica muito bem escrita da sociedade. Tchekhov consegue retratar o quadro da Rússia da época e fazer daquelas estórias, passadas em pequenos povoados, estórias universais por seu caráter humano, como fez Machado quando retratou a sociedade do Rio de Janeiro na época em que escreveu. Tchekhov não é o fotógrafo que registra uma foto de um determinado momento. Tchekhov é pintor, que com suas pinceladas nos faz enxergar o que há de humano por trás da imagem que nos mostra. Por vezes irônico, por vezes cruel, mas sempre com uma escrita fascinante, o escritor russo vai compondo um quadro maior do que o que aparentemente ele quer mostrar. Não há como o leitor ficar apenas na superfície. Em Tchekhov se faz necessário mergulhar mais profundamente, esgotar o texto e suas possibilidades de leitura. Como nos contos de Machado, a minha leitura dos contos de Tchekhov me fez lembrar que não importa o lugar onde se esteja, o ser humano sempre traz dentro de si os sentimentos mais assombrosos que podemos imaginar. É universal, seja no Brasil, seja na Rússia, seja em qualquer outro lugar do planeta. A natureza humana é assustadora.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Odisseia - Homero


Lembro-me da primeira vez que li a Ilíada e a Odisseia de Homero em 2005. Fiquei extasiado com a dimensão daquelas epopéias, de modo que ficou difícil apontar uma das duas como a minha preferida. Passados cinco anos, eis que me debruço novamente sobre elas, e ao invés de sanar a minha dúvida e escolher uma das duas, a confusão apenas aumenta. Em julho reli a Ilíada. Agora, em novembro, foi a vez da releitura da Odisseia. Ítalo Calvino afirma que um clássico é um livro que, mesmo passando muito tempo desde sua escrita, ainda tem algo a nos dizer, e que sempre precisa ser relido. O fato dessas duas epopéias de Homero serem clássicos acredito que seja inquestionável. Fonte de inspiração para a literatura ocidental, as duas epopéias inspiram escritores até os dias de hoje. A Ilíada, grosseiramente falando, trata de um relato de guerra em que o orgulho é trama central e traz proporções mais que humanas ao destino de deuses e guerreiros. A Odisseia, por sua vez, é mais romântica, se é que a podemos classificá-la dessa forma. As aventuras de Odisseu, seu amor por Penélope, o desejo de voltar para casa, para os braços da esposa dileta, tudo isso cantado de forma grandiosa e com técnicas narrativas que prendem o leitor desde a primeira página. A cronologia não se dá da maneira linear. Começamos a epopéia com Telêmaco indo em busca de informações sobre seu pai, ficamos sabendo de acontecimentos ocorridos depois da queda de Troia. Depois o foco narrativo nos leva a contemplar Odisseu, e é o próprio personagem quem vai narrar suas desventuras e aventuras pelo mundo antes de se encontrar na terra dos Feácios, prestes a voltar para casa. Depois voltamos ao presente dos acontecimentos e acompanhamos ao lado dos personagens principais o desfecho da aventura. A epopéia homérica é tão grandiosa, que com o advento do modernismo na literatura, ela não foi deixada de lado, sendo retomada por um dos maiores escritores da literatura, James Joyce, com seu grandioso Ulisses. Os clássicos homéricos, marcos na literatura ocidental, são exemplos de que, como diz Calvino, um clássico nunca terminou de dizer o que tinha para dizer. Elejamos nossos clássicos (já que não podemos ler todos) e boa leitura a todos nós.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

História do Cerco de Lisboa - José Saramago.


O limite que separa escrita de ficção da escrita que se afirma como verdade é tão sutil que às vezes fica difícil dizer quando se trata de uma e quando se trata de outra. Sabemos, por exemplo, que um romance é um romance porque olhamos nos dados de catalogação do livro, ou porque vem escrito na capa embaixo do título, ou porque conhecemos o autor, etc. Há livros, no entanto, que sem termos um conhecimento prévio de sua classificação, poderiam nos gerar as mais desconfortáveis dúvidas. Nesse sentido, há muito livros de História que poderiam ser lidos como ficção. Há inclusive uma tendência moderna de se contar a História nos moldes de uma narrativa tradicional. E há muita escrita de ficção que poderia ser lida e entendida como História (sim, leia-se História com H maiúsculo). Poderia citar vários exemplos. Ao invés disso, se agucei a curiosidade de alguém que me lê, sugiro que procure na livraria (ou na biblioteca) algo classificado como romance histórico, entenderão melhor o que exponho. Essa problemática da escrita que se afirma como ficção e da escrita que se afirma como verdade não é algo novo. Há diversos textos acadêmicos que tentam dar conta do recado. Ou se quisermos ser mais específicos, pensemos em muitos textos que a literatura acolheu e que não são ficção. Basta pensarmos nos primeiros séculos de Brasil, em que chamamos literatura a carta de Pêro Vaz de Caminha, e uma variedade sem fim de documentos que mais interessam à historiografia do que propriamente à literatura, isso sem falar da prosa doutrinária. Isso só nos mostra quão tênue é a linha que separa ficção de realidade. E é essa linha tênue que da origem a um dos romances mais inteligentes e bem escritos da literatura: História do Cerco de Lisboa. Nesse romance, Saramago joga com a arte do fazer literário quando nos presenteia com um personagem que resolve alterar a escrita que se afirma como verdade. Raimundo Silva, um revisor de uma editora, um dia em que está terminando de revisar um livro que conta a História do cerco de Lisboa, sem explicações lógicas resolve meter um não em lugar de um sim. O resultado? Uma História diferente. A partir daí, o escritor português nos convida a adentrar em um mundo onde ficção e realidade se misturam e se completam. Típico de Saramago, o livro levanta questões interessantíssimas e perturbadoras. E se aquilo que concebemos como verdade não for a verdade? E o que vem a ser de fato verdade? E como seria o mundo hoje se a História tivesse sido diferente? A literatura de Saramago, que não está aí para responder questões, mas para levantá-las, nos leva a pensar no poder da escrita, tanto da que se quer verdadeira, como da de ficção, e acompanhamos, ao lado de Raimundo Silva, o confeccionar dessas duas escritas. Raimundo (por motivos que não coloco aqui para não estragar a leitura de quem ainda não se deliciou nas páginas do romance) se atreve a criar um romance de ficção, e ao fazê-lo, acaba criando uma nova História. Inteligente, ousado, mágico e perturbador (e por que não dizer lindo também?), o romance afirma (no meu caso reafirma) que Saramago fez jus ao Nobel de Literatura que ganhou. História do Cerco de Lisboa não é meu romance preferido de Saramago, mas é, a meu ver, um dos textos mais inteligentes da Literatura.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

A Igreja do Diabo e Outros Contos - Machado de Assis.


O homem que morre sem ler Machado de Assis morre duas vezes. Machado é um autor que não canso de reler. E a cada releitura algo novo surge. Nessa minha releitura de A Igreja do Diabo e Outros Contos, que traz alguns dos contos de Histórias Sem Data (1884), Machado me mostra porque é um dos meus escritores preferidos. Seu olhar irônico e cruel sobre a sociedade é ainda mais fascinante nos contos do que nos romances. Pela sua extensão mais breve, temos nos contos de Machado maior lirismo, e seu humor peculiar me parece melhor explorado. Através de estórias breves as máscaras humanas são reveladas, e Machado traz aquilo de mais podre que o homem guarda. Crítico sutil do homem e da sociedade, nosso mestre da literatura soube fazer com maestria o que poucos conseguem: denunciar com estilo. Com muito estilo.

domingo, 17 de outubro de 2010

Outra Volta do Parafuso - Henry James.


Para os que gostam de um romance que mistura terror e suspense, Outra Volta do Parafuso, de Henry James é um prato cheio parar se deliciar. A escrita ágil de Henry James é digna de mérito, pois prende até um leitor desinteressado por esse tipo de estória: eu, por exemplo. Uma jovem preceptora aceita a proposta de cuidar de duas crianças em uma casa em que dois fantasmas aparecem para ela. A escrita de James faz com que o jogo entre realidade e imaginação mantenha o leitor atento e cúmplice. A ambigüidade é muito bem trabalhada, criando um clima de incertezas, de desconfianças, de dúvidas. Por se tratar de um romance de suspense não irei eu estragar o final, nem o meio, nem mesmo o começo, pois ele todo é suspense do começo ao fim. Aos que se sentirem estimulados, boa leitura.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

São Bernardo - Graciliano Ramos


É prática recorrente na literatura alguém contar suas memórias para tentar convencer-se de alguma coisa. Os exemplos são vários. Podemos citar Riobaldo de Grande Sertão: Veredas, que conta sua história na tentativa de entender se houve ou não o tal pacto com o diabo. Exemplo mais famoso em nossa literatura, Bentinho, nosso Dom Casmurro, tenta convencer a si mesmo da traição de Capitu, e narra suas memórias com um enredo perigosíssimo, e espera no leitor um cúmplice que concorde com seu ponto de vista. Mas para mim, nenhuma memória se compara as de Paulo Honório, de S. Bernardo. Segundo romance de Graciliano Ramos, S. Bernardo narra a vida no campo sob o prisma do dominador. É sob o olhar de um homem rude, grosseiro, impetuoso e por vezes malvado que nos chega a narrativa. Depois de acontecimentos que o marcam profundamente, Paulo Honório decide escrever um livro. A princípio tenciona fazê-lo em grupo. Frustrada essa tentativa decide ele mesmo, homem sem estudo, compor as suas memórias e deixá-las impressas no papel. O resultado é uma narrativa em que a língua falada se mistura à língua escrita de maneira deliciosa, numa prosa que traz aquilo de mais universal que existe na literatura: a condição do ser humano. Paulo Honório batalha a vida inteira para conquistar e manter a posição social almejada, e o saldo dessa luta é lindamente descrito no último capítulo do livro. A condição de Paulo ultrapassa os limites do nordeste brasileiro, pois suas memórias, além da descrição da vida no campo, é a descrição de vidas. De vidas simples com toda sua complexidade. Paulo Honório recorre à pena para convencer-se de que tudo o que fez valeu a pena. Acredito que S. Bernardo seja a memória mais bem escrita que já li. Se não for, pelo menos é, sem dúvida, a que mais me tocou.

sábado, 9 de outubro de 2010

O falecido Mattia Pascal - Luigi Pirandello


O homem é aquilo que ele de fato quer ser? Será que no fundo não passamos de um conjunto de convenções sociais, culturais, políticas e religiosas? É essa questão, a da identidade, que aparece no romance O falecido Mattia Pascal, de Luigi Pirandello. Mas além da questão da identidade, o romance mostra quão utópica pode ser a liberdade a que tanto aspiramos. Mattia é um homem que se vê levado pelas circunstâncias a viver uma vida que o angustia tanto a ponto de fazê-lo fugir de sua esposa e sogra. Durante sua fuga, alguém em sua pequena cidade morre, e na volta, a caminho de casa, Mattia descobre que o corpo identificado como morto é o seu. Diante da possibilidade de ser outra pessoa, Mattia então se aventura por novos horizontes com seu novo eu, e é a partir daí que o conflito da identidade começa a nascer. Quem ele é agora? De repente nosso personagem descobre que não pode ser o homem que gostaria de ser se não obedece a certas “regras” sociais. A felicidade a que tanto aspira se vê comprometida por não fazer parte da sociedade, afinal, ele está morto legalmente. Com um texto em que a ironia se faz sempre presente, Luigi Pirandello nos faz pensar no papel do homem na sociedade, em sua liberdade e até na própria vida. O romance mostra as máscaras que devemos vestir se queremos fazer parte do mundo. Ganhador do Nobel de literatura, Pirandello é um dos autores indispensáveis pra quem pretende entender um pouco das máscaras que levamos enquanto vivemos. Vistamos as nossas.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

A metamorfose - Franz Kafka


O que me fascina na literatura são os mundos possíveis que ela é capaz de criar. Eu disse possíveis? Dormir humano e acordar inseto, sabemos, é algo que na vidinha nossa de cada dia não cabe. Na literatura cabe. Reformulemos então a frase. O que me fascina na literatura são os mundos (im)possíveis que ela é capaz de criar. A Metamorfose, de Franz Kafka, talvez seja o exemplo mais apropriado. Em uma narrativa que prende o leitor desde a primeira frase, a estória do homem que se transforma em um inseto fascina por sua estranheza. É uma estória que incomoda, que perturba. Gregor Samsa um dia se descobre inseto, e longe de desesperar-se, trata aquilo como se fosse um sintoma de uma doença qualquer, como ter apanhado uma gripe, por exemplo. No entanto, pelo menos pra mim, a genialidade desta obra está em como mostrar uma realidade possível e existente através de um fato absurdo e inconcebível no nosso universo. A metamorfose de Gregor acarreta mudanças não apenas para ele em sua condição física. Todos ao seu redor se metamorfoseiam com ele. Foi preciso que Gregor se transformasse pra que a família, antes acomodada e sustentada por ele, passasse também por um processo de transformação. Mais do que a estória de um homem que acorda inseto, a novela de Kafka nos mostra como somos transformados pelo que nos rodeia, pelo que nos atinge. Adentrar por esses mundos por vezes obscuros que a literatura é capaz de criar nos ajuda a entender melhor a nossa condição. E se somos transformados pelo que nos rodeia, que a literatura seja capaz de proporcionar as metamorfoses de que necessitamos.

sábado, 25 de setembro de 2010

Admirável Mundo Novo - Aldous Huxley.


Diferente do que sempre faço, ao invés de escrever uma resenha sobre o livro que acabo de ler, dessa vez eu comentarei algo que minha última leitura suscitou em meus modestos pensamentos. Depois de ler Laranja Mecânica e 1984, estava faltando o romance que junto com os outros dois citados fecha a santíssima trindade da literatura de ficção científica: Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley. O livro é bom. E dele direi apenas isso. O assunto que me faz escrever, no entanto, é a diversidade de questões que a obra levanta a medida que avançamos na leitura. Temos descrita uma sociedade estabilizada, em que homens e mulheres são concebidos em série e para um determinado fim. O que para mim pareceu assustador é que não estamos tão longe disso. Há algum tempo, as humanidades foram tendo cada vez menos espaço nos currículos escolares. O que isso significa? Que a música, a literatura, a arte de maneira geral teve que ceder espaço para disciplinas que visam formar profissionais qualificados para determinados tipos de mão-de-obra. Resumo da ópera? Um estudante de medicina, por exemplo, não precisa mais ler a Ilíada ou Shakespeare, ou Machado de Assis (para isso os cursinhos imprimem resumos e mais resumos), não precisa mais descobrir suas aptidões artísticas, que desenvolveriam um lado mais humano, não precisam apreciar um Picasso, nem se encantar com os poemas de Neruda, nem ouvir uma sinfonia de Beethoven. Um estudante de medicina precisa unicamente cortar, costurar e receitar. Não estou desmerecendo o trabalho dos médicos, longe de mim, que respeito todas as profissões. O que quero dizer é que caminhamos rumo a uma sociedade tão cruel em que perder um ano da vida por não ter passado no vestibular parece algo sacrílego, quando na verdade pode ser saudável. Não existe uma idade pra se ingressar em uma profissão, mas o tempo todo somos cobrados e pressionados a passar o quanto antes em um vestibular, em cursar uma faculdade no menor tempo possível, e a pegar o diploma e morrer trabalhando, se a aposentadoria não chegar antes. Estamos sendo criados, como os personagens do livro, para desempenhar um papel puramente político e econômico na sociedade, e ponto final. Carpe diem? Ora, vivemos em um mundo em que aproveitar o dia é ter trabalhado e conseguido cumprir as metas pra poder comprar aquele televisor, e mais aquela roupa, e mais aquele telefone novo. Shakespeare já não está cabendo no nosso mundo. Machado tem se tornado uma voz distante no tempo. Viver é estar formado aos vinte e poucos anos, desempenhando a função que nos foi delegada. E de preferência nunca estar sozinho, pois a solidão nos faz descobrir quem realmente somos. Não pensemos em nada, não pensemos na vida, nem na morte, nem na arte, nem façamos grandes questionamentos... Aceitemos tudo e façamos parte desse mundo, desse admirável mundo novo.

domingo, 19 de setembro de 2010

Macunaíma - Mário de Andrade


Uma verdadeira revolução na linguagem literária, Macunaíma, de Mário de Andrade, é desses livros deliciosos de ler. Desses que se você estiver lendo no ônibus vai passar vergonha, porque não irá conseguir conter o riso diante dos desconhecidos que certamente irão te olhar como se você fosse um louco. A estória do herói sem nenhum caráter é povoada por mitos indígenas que fazem parte do folclore brasileiro, e todos eles são divertidíssimos. Além desses mitos que já existiam e que graças ao produto de sua pesquisa o escritor conseguiu reuni-los na sua rapsódia, há também os mitos criados pelo escritor. Mário acrescenta aos mitos folclóricos da cultura brasileira os seus próprios, sempre com muito humor e por vezes de maneira irônica. Um texto que continua guardando seu frescor moderno. Uma leitura prazerosa e inovadora, onde se mesclam o brasileiro falado e o português escrito, num jogo interessantíssimo com as palavras. A meu ver, o verdadeiro grito de independência que o Brasil deu. Aqui o nacionalismo é presente sem ser xenófobo, consume apenas o que há de bom na arte estrangeira. No seu movimento antropofágico, a nossa arte conseguiu finalmente libertar-se dos modelos estrangeiros estabelecidos (já que a arte não se prende a modelos e formas), e se apresenta como uma arte vanguardista, que dialoga com o que há de mais interessante no mundo da arte. Macunaíma é uma brincadeira séria, um jogo difícil em que autor e leitor vão além da cumplicidade, vão experimentando juntos novas possibilidades na arte de narrar.

domingo, 12 de setembro de 2010

El amor en los tiempos del cólera - Gabriel García Márquez.


Um homem espera pelo grande amor da sua vida durante meio século. Durante meio século ele deseja que seu rival, o esposo de sua amada, morra, para que ele enfim possa viver a felicidade ao lado da eleita do seu coração. Isso nos soa como alguma obra da fase romântica, desses amores impossíveis que encontramos na literatura de José de Alencar ou de Bernardo Guimarães. No entanto, engana-se quem assim julga. O enredo descrito trata-se nada mais nada menos do que mais uma estória do Nobel Gabriel García Márquez. El amor en los tiempos del cólera é um romance com um argumento desses mais açucarados que a literatura pode conceber. Para quem conhece a escrita de Gabriel desconfia de que eu esteja falando dele mesmo. Mas é exatamente a escrita usada pelo escritor que faz desse argumento açucarado uma estória complexa e humana. No primeiro capítulo já ficamos a par de acontecimentos que, seguindo a linha do romance tradicional, seriam deixados para o final. Aqui não. O começo do livro traz Fermina Daza casada com Juvenal Urbino, mas algumas páginas depois se descobre que seu amor do passado foi Florentino Ariza e a partir disso o escritor nos presenteia com uma escrita capaz de colocar ordem no meio dessa desordem aparente. Como ele faz em Crónica de una muerte anunciada, em que já desde a primeira frase do livro anuncia que Nasar vai morrer, aqui também temos informações que antecipam o desenrolar da trama. O autor joga com o tempo, trabalhando-o de maneira não linear, e à medida que a estória avança, ele vai construindo sua fábula. Só alguém com uma escrita muito poderosa é capaz de tornar um argumento tão açucarado em um dos livros mais bem escritos da literatura latino americana. Para quem tiver tempo e disposição de percorrer as quase quinhentas páginas, fica a sugestão. Uma leitura encantadora. Uma visão peculiar do amor e seus sintomas.

domingo, 29 de agosto de 2010

O dialogismo na literatura.


Para mim é difícil escrever sobre poesia. Confesso que não é o meu forte. Mas não podia deixar de comentar essa leitura mais que prazerosa de Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles. Comecemos então por partes. Primeiramente, deixemos claro que romance, dentro da poesia, se trata originalmente de uma espécie de poema épico popular, cantado, acompanhado com música. O gênero ao longo do tempo sofreu modificações (como qualquer gênero literário) e hoje podemos concebê-lo como um tipo de poema narrativo, tal qual a literatura de cordel, que por sinal tem forte influência do romance na sua composição. Não é objetivo desse texto remontar a origem da forma poética em questão, nem acompanhar a sua evolução ao longo da história da literatura. O que pretendo é apenas dar uma pincelada pra que se entenda o que chamamos romance dentro da poesia. Nesse sentido, quando se tem vários poemas narrativos que versam sobre um determinado tema, a compilação desses poemas recebe o nome de Romanceiro. Dito isso, posso começar a escrever sobre o que me interessa.
Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles, como o próprio nome diz, trata da Inconfidência Mineira. Os personagens que fizeram história são motivo de composições belíssimas para nossa poetisa. Mas não só eles. Tudo é motivo para Cecília poetizar: o desejo de liberdade, a ambição, a violência, a esperança, o medo. Através de seus versos Cecília nos mostra um lado da Inconfidência que não está nos livros de História do Brasil. Seus versos especulam sobre uma diversidade de sentimentos, sejam eles dos heróis, sejam eles dos vilões. Há poema para todos. Não ficaram de fora nem os cavalos que participaram da Inconfidência. Seu olhar se detém sobre tudo, sobre todos, com grande variedade de formas em cada romance. E no meio dessa variedade de quase cem romances fica difícil escolher um preferido. Se eu tivesse que me arriscar a escolher um, creio que seria o poema que versa sobre a morte de Cláudio Manoel da Costa. Todo o romance guarda o mistério que gira em torno do nosso poeta árcade. Fosse eu romancista (agora no sentido da prosa de ficção), e faria com Cláudio Manoel da Costa o que fez Saramago com Ricardo Reis. Na verdade, não estou sendo tão original assim, afinal Silviano Santiago já ficcionalizou sobre a morte do nosso poeta inconfidente. Acontece que ao ler o poema de Cecília sobre a misteriosa morte de Cláudio Manoel da Costa, me despertou o desejo de ler (ou de escrever?) uma estória que tivesse como pano de fundo Cláudio vivo depois que todos o julgassem morto. E o que é literatura senão isso? Um livro é sempre uma resposta a outro livro, já dizia Umberto Eco em O Nome da Rosa. Esse dialogismo mantém viva a literatura. E é esse dialogismo que levou Cecília a escrever o seu Romanceiro. Uma composição que vai muito além da Inconfidência Mineira. Uma composição que nos deixa marcas. Poemas que segundo Ana Maria Machado, ficam pra sempre. Aí reside a boa literatura.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Um mundo de cores na literatura do século XIX.


A arte imita a vida ou a vida imita a arte? No caso de O Cortiço, de Aluísio Azevedo, a arte imita a vida de uma maneira envolvente e sombria. O escritor nos brinda com um mundo miserável em que as leis da natureza ajudam a compor uma das estórias mais fascinantes da literatura brasileira. A estória de uma habitação coletiva traz consigo um mundo cercado de pobreza, de oportunistas, de ambiciosos, de aproveitadores, e traz a tona muitas das misérias humanas. Em uma época em que não havia ainda o cinema e nem a televisão, a leitura de O Cortiço nos brinda com uma visão muito interessante do coletivo. Ao ler o romance parece que estamos diante de uma câmera que da conta de captar o cortiço e seus personagens de um ângulo que tudo mostra, mas que ao mesmo tempo, escolhe alguns personagens e algumas situações para particularizar. É assim a escrita de Aluísio Azevedo nesta obra. Ao mesmo tempo em que da conta do coletivo, consegue particularizar aquilo que é mais substancial pra composição do romance. O resultado é essa sensação de estarmos diante de uma tela de cinema, e de nos deixarmos levar pela câmera, para ver ora o cortiço e toda sua riqueza de personagens e situações, e ora a vida particular desses seres miseráveis, levados pelo instinto humano, rebaixados à condição de animais que agem segundo instintos que lhe são impostos pelo meio. Uma estória sombria. Um mundo sombrio. Sombrio e real. O Cortiço, escrito no século XIX, parece uma quadro que Aluísio pintou. A pintura de um quadro é diferente de uma fotografia. A pintura é subjetiva. E nesse quadro pintado por Aluísio, temos pinceladas que querem retratar da maneira mais real possível o mundo hostil no qual o homem está inserido, mas que, exatamente por ser arte, vêm carregadas de uma subjetividade que mostra o mundo real sob novas cores. E neste quadro sombrio que Aluísio Azevedo soube pintar de maneira esplêndida, se pode ver cores que contrastam com esse ambiente escuro e de podridão. Eu as vejo claramente quando leio. As vejo nas cores vivas da saia de Rita Baiana. As vejo nas cores dos movimentos ligeiros de Firmo. As vejo na palidez do Albino. As vejo no sangue que sai pela primeira vez de Pombinha. Tudo isso contrasta com esse mundo sombrio que ele soube pintar. E você, que cores é capaz de enxergar na leitura de O Cortiço?

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Sorria, você está sendo filmado.


Primeiramente ele é assustador. Assustador e muito inteligente. 1984, de George Orwell não é um daqueles romances políticos que querem incutir goela abaixo no leitor um determinado ideal. Não. Não se trata de literatura panfletária, longe disso, o que temos é uma visão assustadoramente inteligente da sociedade que estamos construindo. Obviamente que a sociedade descrita no romance de Orwell tem seu exagero típico dos romances de ficção científica, mas as semelhanças com a sociedade na qual estamos inseridos hoje é tão intensa em alguns pontos que vem daí esse desconforto que causa o assombro e o medo. Mas o que a meu ver é mais interessante não é apenas a crítica ou a visão aguçada do ser humano e da sociedade o que se destaca nessa obra. A crítica pela crítica não interessa à literatura. Se o objetivo é apenas criticar aí temos os artigos, os textos críticos, as dissertações, e toda a sorte de gêneros discursivos. À literatura, mais do que a percepção do homem sobre o meio ao qual está inserido, o que importa é o trabalho com a linguagem. Nesse romance temos uma visão inteligente e assustadora de uma sociedade rumo a mais fria crueldade, aliada a uma escrita muito bem trabalhada. Uma escrita que nos assusta quando nos faz pensar que não estamos assim tão longe de sermos vigiados como estão os personagens do romance em frente às teletelas. Uma escrita que nos faz pensar a relação da imprensa com a sociedade, do governo com a sociedade, que nos faz questionar a veracidade das notícias que lemos e ouvimos todos os dias pelos meios de comunicação que julgamos os mais sérios. Não se trata de uma teoria da conspiração, se trata de uma reflexão inteligente sobre a sufocante tecnologia que vem esmagando a humanização do mundo. Afinal, se a tecnologia muito trouxe de contribuição para o mundo, ela também é responsável por alguns “danos”. Não é minha intenção enumerar e discutir as diversas problemáticas que o livro levanta mas é impossível ler 1984 sem deixar de pensar na falta de privacidade que sofremos, na exposição gratuita da nossa vida em sites da internet, de como podemos ser localizados a qualquer hora do dia em qualquer lugar do planeta. Mais uma vez, repito, não estou levantando juízos de valor, afinal, também eu participo de sites que expõe a nossa vida gratuitamente, também eu acredito em muitas das notícias que o telejornal proclama, também eu uso celular e me deixo localizar facilmente onde quer que eu esteja. Mas ao ler o romance de Orwell, não se pode deixar de refletir sobre o rumo de nossas vidas nessa sociedade cada vez mais desumana. Não se lê 1984 sem vir à cabeça a famosa frase: Sorria, você está sendo filmado.

sábado, 7 de agosto de 2010

Sangre como la mía


Sabe aquele livro que, estando você na rua, não vê a hora de voltar pra casa para lê-lo? Sangre como la mía, de Jorge Marchant Lazcano, um escritor chileno, é um desses livros. Não se trata de uma leitura fácil. O autor conta com a cumplicidade do leitor para compor sua narrativa. Em primeiro lugar porque se trata de uma narrativa interessantíssima do ponto de vista estético. Dois tempos convivem juntos dentro do romance, um passado que avança até o presente, e um presente que volta ao passado, tudo isso narrado por uma diversidade de vozes dentro da obra que permite a exposição de vários pontos de vistas distintos de uma mesma estória. Por sua estrutura, a narrativa exige um leitor atento, e mais do que atento, paciente. O tempo não se da de maneira linear, e dessa forma, o leitor salta no tempo, levado pelas vozes dos diversos narradores, e aos poucos vai construindo uma imagem mais ampla da estória que está sendo contada. Desde La ciudad y los perros, de Vargas Llosa, eu não lia algo tão interessante e inovador do ponto de vista do uso da linguagem dentro da literatura. E, diga-se de passagem, a literatura latino americana é mestra em fazê-lo. No entanto, eu poderia escrever parágrafos e mais parágrafos sobre a estrutura formal do romance de Lazcano, mas quero agora falar do argumento. Para os que gostam de uma boa estória, Sangre como la mía é um prato cheio para se lambuzar. Um romance comovente, doloroso, humano, universal. Não se trata apenas da estória de jovens homossexuais chilenos ao longo de várias décadas, em um determinado momento, em determinados lugares, vivendo determinadas situações. A estória vai além disso e nos mostra o vazio que habita o mundo dessas pessoas fragilizadas emocionalmente, querendo a todo custo provar algo, para os outros, para si mesmos, querendo buscar algo que não se sabe exatamente o que. Mais do que a condição homossexual, está presente na obra a condição humana e os sentimentos que agitam o interior do indivíduo. Os conflitos familiares, o comportamento social, tudo é muito bem trabalhado dentro da obra. E o mais gostoso na leitura é que não se trata de literatura militante, em defesa de algo. É literatura e ponto. Literatura no seu melhor estilo, resgatando aquilo de mais sublime que há na existência humana, trabalhado em uma linguagem cheia de pluralidade e inovação. Não é literatura escrita por um homossexual para um público homossexual. Trata-se de uma obra sensível, rica, grandiosa, para um leitor inteligente e amante da boa literatura. A notícia ruim? Não existe (ainda) tradução pro português. Aos que sabem ler em espanhol fica a indicação. Aos que não sabem, fiquem atentos, e quando se depararem com esse título na livraria: “Sangue como o meu”, agarrem o seu exemplar, e corram para casa pra começar a ler.

sábado, 31 de julho de 2010

Leopardos irrompem no templo.


Sempre fico com o pé atrás quando se trata de literatura encomendada, dessas que uma editora convoca um número de escritores pra escrever sobre determinado tema. Uma dessas brincadeiras foi a coleção Literatura ou Morte, em que escritores foram convidados a escrever romances sobre outros escritores. A Moacyr Scliar coube o grandioso Franz Kafka. Tarefa difícil, que Moacyr cumpriu com muito talento. Criando uma situação verdadeiramente kafkiana, a estória que ele se propõe a contar prende o leitor da primeira a última página, como todas as obras de Kafka. Inusitadas, as situações vividas por Ratinho, o personagem principal, são tão inquietantes como as vividas pelos personagens de Kafka, quando um dia um homem acorda inseto, ou quando um dia um homem é acusado sem saber exatamente de que. Kafka aparece na estória de Moacyr, mas mais do que retomar o escritor, o autor de Os Leopardos de Kafka brinca justamente com o modelo de narrativa kafkiano. Uma literatura que dialoga com a própria literatura, com um escritor consagrado, com a arte do fazer literário, e que mostra que mesmo sob encomenda, Moacyr é dono de uma narrativa instigante, intrigante, e arrebatadora. Recomendo a leitura. No entanto, antes de irromper no templo dos leopardos, o leitor ganha se conhecer a escrita kafkiana; dessa forma ela será capaz de entender melhor o dialogismo que Scliar propôs em sua literatura de encomenda.

terça-feira, 27 de julho de 2010

Angustiado


Não é, mas Angústia, de Graciliano Ramos, poderia ser uma estória banal, que ainda assim, se o narrador utilizasse a mesma linguagem que utiliza para narrar sua estória, ela continuaria figurando entre os livros mais interessantes da literatura luso-brasileira. Comecemos então por ela, a linguagem. Três tempos compõe a narrativa, um tempo presente, que é quando o livro começa; um tempo que remete ao principal feito da narrativa: o amor de Luís por Marina e as conseqüências desastrosas dessa paixão; e um terceiro tempo: a infância do narrador no interior de Alagoas. Graças ao manejo da linguagem pelo narrador, esses três tempos se misturam na narrativa de maneira fascinante. Narrado em primeira pessoa, os pensamentos de Luís se constituem ferramenta fundamental para esse resultado primoroso do trabalho com a linguagem. O que chega ao leitor são os dilemas desse homem deslocado numa capital, e que não consegue se desvencilhar totalmente de sua vida no interior. Isso fica claro quando a narrativa principal é “interrompida” pelos devaneios do narrador que busca sempre relacionar o presente com seu passado. E não se esgota aí, mas tenho medo de acabar revelando surpresas sobre o enredo da estória e assim estragar a leitura de quem me lê e ainda não se aventurou pelas páginas de Angústia.
Outro aspecto importante é o argumento da obra. Como eu mencionei, se Angústia apresentasse um argumento banal, mas conservasse a linguagem que o autor emprega, ainda assim seria uma obra interessante. No entanto, o argumento é dos mais fascinantes. O personagem principal atinge proporções dostoievskianas quando narra a autopunição que ele se impõe no final da narrativa. E não somente ele, os personagens são de uma simplicidade que cativam: Dona Vitória e seu papagaio, seu Ivo, Dona Rosália e o marido que o narrador nunca vê o rosto, dona Adélia, Julião Tavares, e claro, Marina, com seus cabelos de fogo. Mas a simplicidade está apenas nos personagens, no estilo de vida que levam. Sua caracterização é complexa, se misturam na pena do narrador quando este mescla os tempos e compara pessoas e situações de sua vida presente com a passada.
Leitura obrigatória, Angústia, de Graciliano Ramos, não é apenas a estória de um homem e sua condição em uma capital de um determinado país, em um determinado momento. É uma estória atemporal pois traz a essência humana, essa angústia que trazemos cá dentro, mas em um nível que para o narrador dessas memórias culminou no desfecho narrado na obra. Não há como não ler e não se sentir angustiado. Para os que se aventurarem pelas páginas desse mestre da literatura brasileira, boa leitura e boa angústia pra vocês.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

O comentário que virou postagem

... o melhor e mais genial escritor jamais conseguirá passar pro papel a intensidade de um sentimento. Somos nós que ao ler algo, nos identificamos, e projetamos nas palavras lidas aquilo que carregamos cá dentro.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Das negativas em Memórias Póstumas.


Já muito se escreveu sobre Machado de Assis e sua obra. Hoje me atrevo a resenhar um pouco sobre a minha terceira leitura de Memórias Póstumas de Brás Cubas. Longe de querer esgotar os temas que a obra levanta, quero antes de tudo imprimir a minha impressão nessa terceira leitura, a impressão das negativas. O último capítulo leva esse título: das negativas, mas elas permeiam o livro todo, desde o começo até a última página. Não esqueçamos que as Memórias começam dedicadas ao verme que primeiro roeu as carnes do autor, e terminam reforçando a miséria da vida, quando junto com os saldos negativos, o autor lamenta (ironicamente) não haver tido um filho pra transmitir esse legado mísero. O livro pode ser lido como uma crítica ao ser humano, e de fato ele é, mas nessa minha terceira leitura eu enxerguei além. Criticar o ser humano é tendência em toda a obra do Machado, desde sua fase romântica. Em Memórias Póstumas ele vai além, e critica a própria vida. Na condição de morto e livre da hipocrisia e de outros sentimentos que regem a existência humana, o narrador Brás Cubas nos mostra um quadro ácido da vida. O amor é questionado em figuras como a personagem Marcela, que o amou por quinze meses e onze contos de réis. A vida é questionada em existências como a de Dona Plácida. A vida é pintada sem as cores do romantismo, como quando o filósofo Quincas Borba expõe o Humanitismo ao ver dois cachorros brigarem por um pedaço de osso. A vida é pintada com pinceladas cruéis. E é ela a principal personagem dessas memórias. Desde o começo, o narrador quer falar de vida, e já começa ironizando a sua, na dedicatória do livro. Com sua pena por vezes ácida, por vezes cruel, por vezes assustadoramente real, Machado de Assis nos faz enxergar a vida sem os floreios que costumamos dar a ela para tentar aliviar a nossa condição de reles mortais. A obra, antes de uma crítica a sociedade, ao ser humano, a diferença de classes, ao amor de conveniências, e a tantas outras críticas possíveis dentro do livro, é uma crítica a vida, essa vida que se apresenta tão deliciosa a nós, mas que mesmo assim, está cheia de negativas. A principal delas? A morte.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Memorial do Convento - José Saramago.


Algumas estórias são como fotografias que a mente congela. De tão intensas nos ficam gravadas imagens das cenas que nos são sugeridas imaginar. Não é segredo que sou fã de Saramago e da sua escrita fascinante, mas tietagem a parte, ele é um dos escritores que mais consegue que eu fotografe algumas das cenas de livros em minha mente. Se para mim A Caverna é declaradamente o seu romance de que mais gosto, é Memorial do Convento a obra que mais me apresenta imagens dignas de se gravar. A construção do convento é para mim mais heroico do que a guerra de Troia. A imagem daquela pedra descomunal tendo que ser transportada seguramente desafia qualquer diretor de cinema. E o que dizer da passarola nas duas vezes em que ela ganha o céu? E de Blimunda que recebe Baltazar entre as palhas da manjedoura, ou ainda, a imagem mais marcante, quando na fogueira da maldita inquisição queima um homem com um gancho no lugar da mão esquerda? Não menos desesperador é Blimunda a procurar por seu homem, e o espigão que atravessa a costela do padre devasso. Memorial do Convento é para mim uma sucessão de imagens que vão se sobrepondo ao longo do romance, e que incomodam, perturbam, fascinam. É para mim um romance que jamais deve virar filme, porque acredito que ninguém seria capaz de captar a beleza (sim, há beleza no trágico) das imagens que imaginei.

sábado, 30 de janeiro de 2010

Memórias póstumas de Machado.

Machado bem poderia ter aprendido com Brás Cubas a arte da narração além túmulo.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Em Liberdade.


Tem se tornado cada vez mais freqüente: ficcionalizar pessoas e situações reais. Ficcionalizamos a guerra de Canudos, o descobrimento do Brasil, a guerra de Tróia, as grandes navegações portuguesas. Ao se olhar para a história da literatura constata-se que não é de hoje o hábito de tornar ficção uma situação real. Também muitos personagens que povoam o universo literário existiram num chamado mundo real. Basta citar Dante em sua Divina Comédia, colocando-se ele próprio como personagem de sua saga. Ou Camões que eternizou Vasco da Gama na sua epopéia que narra a saga dos portugueses em busca do caminho marítimo para a Índia. Não é de hoje que os escritores buscam no mundo real um ponto de partida para fazer arte. Dante chega a ir além, quando coloca criador e criatura dentro de uma mesma obra, afinal, ao percorrermos as páginas de sua Divina Comédia encontramos Odisseu (Ulisses) e também seu criador, Homero.
Jogar com as possibilidades literárias é algo que os escritores fazem há muito tempo. Mas o que acontece quando ficcionaliza-se o próprio universo ficcional? Não são raras as obras em que encontramos um dialogismo literário. Exemplos? Capitu, personagem de Machado de Assis, é na literatura brasileira a personagem mais retomada por outros escritores. Podemos citar Dalton Trevisan, Fernando Sabino, Ana Maria Machado, Domício Proença Filho, entre outros que novamente deram vida e voz a Capitu. Obras que dialogam com outras obras, escritores que dialogam com outros escritores. Como exemplo máximo de escritores que dialogam com outros escritores temos Em Liberdade de Silviano Santiago. Em Liberdade é uma ficção que se propõe a apresentar um suposto diário do escritor Graciliano Ramos a partir do momento em que este deixa a cadeia como preso político. Não se trata de narrar as memórias do cárcere, algo que Graciliano fez depois que esteve preso, mas sim, de materializar as percepções de um homem, de um escritor, de um intelectual que depois de um período de confinamento é posto em liberdade. Silviano Santiago ficcionaliza Graciliano Ramos, povoa o universo ficcional a partir de situações reais e dramáticas vividas por um dos mais importantes ficcionistas do nosso país. E o faz com uma maestria que lhe rendeu o prêmio Jabuti de melhor romance. Nessa ficção, Silviano nos apresenta um Graciliano maltratado, sofrido, angustiado, perdido. Temos o Graciliano homem, o Graciliano escritor, o Graciliano político, o Graciliano intelectual, e todas essas facetas compõem um Graciliano completamente humano. Ficcionalizando Graciliano Ramos, Silviano Santiago consegue tecer considerações sobre os rumos da literatura no Brasil, a condição do escritor no nosso país, e sobre a literatura de uma maneira geral. Nas páginas do suposto diário nos chegam as implicações da arte do fazer literário.
A maneira como se dá a construção da obra também é algo digno de comentário. O leitor está diante de um suposto diário escrito pelo escritor Graciliano Ramos, que é entregue a um amigo deste para que seja publicado 25 anos depois da sua morte. No entanto, por razões explicadas já no início da obra, o diário vai parar na mão de Silviano Santiago, que satisfaz o desejo do escritor e 25 anos após a morte de Graciliano publica suas primeiras palavras depois que é posto em liberdade. O leitor se encontra diante de um jogo. Cabe a ele aceitar o pacto ficcional e adentrar pelas páginas do diário acreditando que o diário foi escrito por Graciliano Ramos. Se não houver esse pacto, não há obra.
Em suma, Silviano Santiago consegue não apenas dialogar com outro escritor e com sua obra, mas também dialoga com as maneiras do fazer literário e com o próprio fazer literário. Em liberdade é romance, é crítica, é história, e é experimentação na arte de narrar.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

José Saramago e a estrutura social.


Escritor aclamado e premiado, José Saramago é dono de uma escrita contagiante. Ao se começar a ler qualquer um de seus romances o leitor é preso pela maneira singular que o escritor tem de narrar uma estória, e, seguramente, não deitará o livro sem aquela angústia que nos causa as suas inusitadas situações criadas. E acredito que empreguei adequadamente o termo 'inusitadas' para as situações criadas pelo autor. Uma epidemia de cegueira branca que se espalha por um país, ou um pedaço de terra que se desprende de repente do continente e começa a navegar sozinho não me parecem situações muito corriqueiras. Costumo definir literatura como um mundo possível, e nesse sentido, Saramago é mestre em criar possibilidades para os nossos mundos. Não apenas sua escrita milagrosa, inteligente e bem trabalhada, também os argumentos de seus romances são fascinantes.
Saramago não diz, sugere. E atrás de suas tramas bem articuladas se pode notar uma crítica feroz ao modelo de sociedade ao qual estamos estruturados. Em A Caverna essa crítica parece mais aberta, com Cipriano Algor lutando por sobreviver em um mundo que tudo descarta, um mundo onde ele parece não ter mais lugar, mais serventia. Retomando Platão, Saramago nos conta uma estória moderna de como vivemos em um mundo de ilusões, e de como a sociedade se estrutura para manter os indivíduos acorrentados ao modelo social e de vida já pré-estabelecidos.
Mas se em A Caverna essa crítica à estrutura social parece mais declarada, em outros romances ela é sugerida por detrás das tramas centrais das estórias. Em Ensaio Sobre a Cegueira, a estória sobre a epidemia de cegueira branca carrega implicações de como é frágil a nossa estrutura social. Em questão de dias o país se converte num caos. Saramago nos mostra uma sociedade frágil e fragilizada, caótica e egoísta, e trabalha os mais diversos instintos humanos nessa estória de luta pela sobrevivência em um mundo novo e desconhecido.
A estrutura social é novamente bagunçada quando se trata de A jangada de Pedra. Quando inexplicavemente a Península Ibérica se desprende da Europa, seus habitantes abandonam seus lares e partem em um êxodo sem rumo, eles próprios dentro da península, e a própria península, que parece navegar sem direção. Nessa atmosfera de falta de rumo, além da clássica pergunta: 'quem somos?, onde estamos?, para onde iremos?', a estrutura social entra em colapso quando se descobre que a península irá se chocar com outro pedaço de terra. Saramago descreve então o caos na sociedade, a situação das cidades, dos aeroportos, das estradas, dos hotéis, e mais importante, das pessoas.
E os exemplos não se esgotam aqui. Poderia ainda citar As intermitências da morte, quando esta para de trabalhar por puro capricho, levando a sociedade a uma situação mais do que caótica. Poderia também falar de Levantado do chão e sua temática do mais forte explorando o mais fraco, ou ainda a descrição hierárquica do Conservatório Geral do Registo Civil de Todos os Nomes. Em seus romances, seja abertamente, seja nas entrelinhas, Saramago nos chama a atenção para a estrutura social e sua fragilidade. Por isso deve ser leitura obrigatória. Mais do que situações inusitadas e mundos possíveis dentro de suas páginas, temos um retrato muito bem pintado do mundo em que estamos inseridos.