quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Grande Sertão: Veredas - Guimarães Rosa.


"Na extraordinária obra-prima Grande Sertão: Veredas há de tudo para quem souber ler, e nela tudo é forte, belo, impecavelmente realizado. Cada um poderá abordá-la a seu gosto, conforme o seu ofício, mas em cada aspecto aparecerá o traço fundamental do autor: a absoluta confiança na arte de inventar." - Antônio Cândido, o homem dos avessos.

Há de tudo para quem souber ler e cada um poderá abordar a obra a seu gosto. É o que diz Antônio Cândido acerca de Grande Sertão: Veredas. Difícil é, no entanto, eleger um aspecto da obra-prima de Guimarães Rosa diante dessa diversidade que o próprio título sugere. Um aspecto que me chama a atenção nesse universo é o narrador.
Narrador ou contador de histórias? A Narração do ex-jagunço Riobaldo em uma conversa com um interlocutor mudo relembra sua vida de jagunço, as lutas em que se envolveu, seu amor por Diadorim e sua dúvida sobre a existência do diabo e por conseguinte, do pacto feito com ele. Essa narração se desenvolve de uma forma um tanto casual e desordenada, flui como uma conversa, um relato, e à medida em que estórias vão sendo contadas uma trama maior vai se contruindo, crescendo.
Tendo Riobaldo como guia, o leitor vai oas poucos se aventurando na travessia do sertão, que nada mais é do que a vida, o mundo, metaforizados. O leitor vai sendo levado por vários rumos e com isso toma para si os questionamentos existenciais do narrador, sua busca existencial. Tudo isso porque o leitor é convidado a trilhar as veredas do grande sertão, a refazer esses caminhos novamente junto a Riobaldo. Riobaldo quer confessar o que foi sua vida, e confessa a seu interlocutor na tentativa de esclarecer sua grande dúvida a respeito da validade do pacto com o diabo. Ele quer a ajuda desse homem que ouve suas dúvidas metafísicas: "Quero armar o ponto dum fato, para depois lhe pedir um conselho." Mas a dúvida permanecerá até a última página do livro, pois não há registro da fala do interlocutor do começo ao fim; um recurso que confere dramaticidade à obra pois remete as dúvidas metafísicas unicamente a quem está conduzindo a estória, sendo portanto uma dúvida insaciável do próprio leitor, que tudo o que tem é a dúvida de Riobaldo e sua tentativa de tentar compreendê-la.
Riobaldo é um narrador-protagonista que não tem acesso ao estado mental das personagens, nem domínio de saber o que ocorreu em lugares onde ele não esteve. Não há a onisciência narrativa. Como já ficou dito, a narrativa do ex-jagunço é uma confissão do que ele viu e viveu, logo ele se limita apenas a narrar os fatos e a no máximo fazer algumas suposições sobre eles. Riobaldo não tem certeza sobre o pacto de Hermógenes com o diabo (como não tem certeza do seu próprio). O que ele nos narra é o que ouviu dizer a respeito de seu inimigo. O que temos é um narrador que nos conta a estória como ele a percebe. A estória nos chega com as dúvidas, as incertezas, as crenças, as percepções, os sentimentos e os pensamentos do ex-jagunço. Esse recurso narrativo é responsável por causar certa ambiguidade no leitor sobre o mistério que é Diadorim. Como é Riobaldo quem narra ,a verdade sobre o verdadeiro sexo de seu parceiro só é descoberta quando ele próprio a descobre. Não existe um narrador que nos revele o segredo no início ou no meio da obra pois estamos sendo conduzidos por Riobaldo nessa estória que ele refaz, que ele insiste em reviver.
Outro aspecto que gera ambiguidade no leitor por conta desse recurso é o momento em que o ex-jagunço faz o seu suposto pacto om o diabo. Toda a cena é descrita do ponto de vista de Riobaldo, tudo nos é tranmitido conforme as suas percepções, e como suas percepções sobre o fato são incertas, incerta também são as nossas, como leitores.
Mas não é só às personagens e às situações que esse recurso narrativo confere dramaticidade à obra. O mesmo acontece nas descrições dos espaços. No plano geográfico, as narrações de Riobaldo tornam o cenário flutuante. O Liso do Sussuarão, por exemplo, é descrito pelo ex-jagunço de tal forma que parece intransponível. Mas de repente já não o é, porque Riobaldo ultrapassa a realidade geográfica e a transforma, na medida em que vai ele próprio aos poucos atravessando o Sussuarão.
Com tudo isso, Riobaldo não se mostra apenas um contador de estórias, mas também um exímio narrador. Seu discurso se faz interessante, tão interessante a ponto de seu interlocutor escutá-lo ao longo das mais de 500 páginas do livro. Riobaldo sabe como conduzir sua história, sabe como "armar o ponto dum fato". Toda essa técnica narrativa empregada por Guimaraes Rosa faz de Riobaldo um dos narradores mais interessantes da literatura brasileira. No final, tudo o que o leitor tem são os mesmos questionamentos de quem narra suas memórias, suas dúvidas, suas percepções, seus sentimentos. No final, tudo o que o leitor pode fazer é levantar hipóteses, fazer perguntas. Mas devido a maneira como a narrativa é conduzida, o leitor nunca será capaz de respóndê-las. É assim que se faz boa literatura.

domingo, 19 de dezembro de 2010

O Assassinato E Outras Histórias - Anton Tchekhov.


É difícil para mim escrever sobre o Tchekhov. Este foi o meu primeiro contato com sua literatura, e quem já leu Anton Tchekhov sabe da densidade de sua escrita. Não gosto de comparar escritores, pois cada escritor (bem como cada obra) é único, tem seu estilo, sua escrita, mas confesso que ao ler o escritor russo, o nosso brasileiríssimo Machado de Assis me vinha muito à mente. Assim como Machado, encontramos na obra de Tchekhov (pelo menos na antologia de contos que li) uma crítica muito bem escrita da sociedade. Tchekhov consegue retratar o quadro da Rússia da época e fazer daquelas estórias, passadas em pequenos povoados, estórias universais por seu caráter humano, como fez Machado quando retratou a sociedade do Rio de Janeiro na época em que escreveu. Tchekhov não é o fotógrafo que registra uma foto de um determinado momento. Tchekhov é pintor, que com suas pinceladas nos faz enxergar o que há de humano por trás da imagem que nos mostra. Por vezes irônico, por vezes cruel, mas sempre com uma escrita fascinante, o escritor russo vai compondo um quadro maior do que o que aparentemente ele quer mostrar. Não há como o leitor ficar apenas na superfície. Em Tchekhov se faz necessário mergulhar mais profundamente, esgotar o texto e suas possibilidades de leitura. Como nos contos de Machado, a minha leitura dos contos de Tchekhov me fez lembrar que não importa o lugar onde se esteja, o ser humano sempre traz dentro de si os sentimentos mais assombrosos que podemos imaginar. É universal, seja no Brasil, seja na Rússia, seja em qualquer outro lugar do planeta. A natureza humana é assustadora.