quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Em Liberdade.


Tem se tornado cada vez mais freqüente: ficcionalizar pessoas e situações reais. Ficcionalizamos a guerra de Canudos, o descobrimento do Brasil, a guerra de Tróia, as grandes navegações portuguesas. Ao se olhar para a história da literatura constata-se que não é de hoje o hábito de tornar ficção uma situação real. Também muitos personagens que povoam o universo literário existiram num chamado mundo real. Basta citar Dante em sua Divina Comédia, colocando-se ele próprio como personagem de sua saga. Ou Camões que eternizou Vasco da Gama na sua epopéia que narra a saga dos portugueses em busca do caminho marítimo para a Índia. Não é de hoje que os escritores buscam no mundo real um ponto de partida para fazer arte. Dante chega a ir além, quando coloca criador e criatura dentro de uma mesma obra, afinal, ao percorrermos as páginas de sua Divina Comédia encontramos Odisseu (Ulisses) e também seu criador, Homero.
Jogar com as possibilidades literárias é algo que os escritores fazem há muito tempo. Mas o que acontece quando ficcionaliza-se o próprio universo ficcional? Não são raras as obras em que encontramos um dialogismo literário. Exemplos? Capitu, personagem de Machado de Assis, é na literatura brasileira a personagem mais retomada por outros escritores. Podemos citar Dalton Trevisan, Fernando Sabino, Ana Maria Machado, Domício Proença Filho, entre outros que novamente deram vida e voz a Capitu. Obras que dialogam com outras obras, escritores que dialogam com outros escritores. Como exemplo máximo de escritores que dialogam com outros escritores temos Em Liberdade de Silviano Santiago. Em Liberdade é uma ficção que se propõe a apresentar um suposto diário do escritor Graciliano Ramos a partir do momento em que este deixa a cadeia como preso político. Não se trata de narrar as memórias do cárcere, algo que Graciliano fez depois que esteve preso, mas sim, de materializar as percepções de um homem, de um escritor, de um intelectual que depois de um período de confinamento é posto em liberdade. Silviano Santiago ficcionaliza Graciliano Ramos, povoa o universo ficcional a partir de situações reais e dramáticas vividas por um dos mais importantes ficcionistas do nosso país. E o faz com uma maestria que lhe rendeu o prêmio Jabuti de melhor romance. Nessa ficção, Silviano nos apresenta um Graciliano maltratado, sofrido, angustiado, perdido. Temos o Graciliano homem, o Graciliano escritor, o Graciliano político, o Graciliano intelectual, e todas essas facetas compõem um Graciliano completamente humano. Ficcionalizando Graciliano Ramos, Silviano Santiago consegue tecer considerações sobre os rumos da literatura no Brasil, a condição do escritor no nosso país, e sobre a literatura de uma maneira geral. Nas páginas do suposto diário nos chegam as implicações da arte do fazer literário.
A maneira como se dá a construção da obra também é algo digno de comentário. O leitor está diante de um suposto diário escrito pelo escritor Graciliano Ramos, que é entregue a um amigo deste para que seja publicado 25 anos depois da sua morte. No entanto, por razões explicadas já no início da obra, o diário vai parar na mão de Silviano Santiago, que satisfaz o desejo do escritor e 25 anos após a morte de Graciliano publica suas primeiras palavras depois que é posto em liberdade. O leitor se encontra diante de um jogo. Cabe a ele aceitar o pacto ficcional e adentrar pelas páginas do diário acreditando que o diário foi escrito por Graciliano Ramos. Se não houver esse pacto, não há obra.
Em suma, Silviano Santiago consegue não apenas dialogar com outro escritor e com sua obra, mas também dialoga com as maneiras do fazer literário e com o próprio fazer literário. Em liberdade é romance, é crítica, é história, e é experimentação na arte de narrar.

3 comentários:

Jay Jay disse...

Vc cita Camões, Homero, para ilustrar uma mistura de situações, de tempo e de espaço e personagens resgatadas de livro em livro, e venho falar-lhe apenas de um livro só. Começa assim: esta noite tive um sonho. Segue então em prosa corrida a estória de uma mulher. Moribunda. E do português vernáculo ao mais erudito ela corre vários momentos da vida. Alucinante nas descrições, confundem-na, numa primeira análise com luxúria. E fascinados pela liberdade da linguagem, nem nos damos conta dos medos e da morte omnipresentes. E como se apenas a parte pecaminosa ali estivesse, quase nem se nota o desencanto da morte dela. Peguei pesado hoje ao escrever-te, Uma obra menor, dirás tu. Vi Fernanda Torres em palco fazendo a peça. No dia seguinte li o livro de uma golfada. “A casa dos budas ditosos” será pecado citar aqui. Mas eu pecador, me confesso...
“Esta noite tive um sonho…”
É comédia. Divina.

Jay Jay disse...

"E porque os antigos deuses haviam morrido por inúteis os homens descobriram outros que sempre tinham existido encobertos pela sua não necessidade

O primeiro de todos foi a montanha porque era ela que no seu mais alto pico sustentava o peso do céu

Aquele mesmo céu que os velhos deuses em tempos idos habitaram e donde de pais para filhos desprezaram os homens porque desprezo fora impor-lhes salvações contra a sua própria humanidade

O segundo deus foi o sol porque ensinara a redescobrir a roda embora houvesse tribos que veneravam a lua pela mesma razão

Essas porém em noites de quarto minguante ou crescente traziam os olhos baixos

Provando assim que cada tribo tem o deus que perfere e não outros

Mas a nova mitologia a isto se resumiu porque um dia houve um homem que subiu ao pico da montanha e por essa maneira se viu que sozinho levantara o céu

E outro pegou nas rodas que haviam sido o sol e a lua e lançou-as para longe onde não brilharam

Definitivamente deus só ficou o rio porque os homens vão mergulhar nele as mãos e o rosto e têm estrelas nos olhos quando se levantam

Enquanto as águas por sua vez transportam ao céu e ao sol se o há a turvidão salgada das lágrimas e do suor

E as plantas verdes que dentro de água vivem estremecem sob o vento que traz aquele cheiro de homem a que a terra ainda não se habituou"

.

.de "O Ano de 1993" de JS

Jay Jay disse...

“... Tinha suspirado, tinha beijado o papel devotamente! Era a primeira vez que lhe escreviam aquelas sentimentalidades, e o seu orgulho dilatava-se ao calor amoroso que saía delas, como um corpo ressequido que se estira num banho tépido; sentia um acréscimo de estima por si mesma, E parecia-lhe que entrava enfim numa existência superiormente interessante, onde cada hora tinha o seu encanto diferente, cada passo conduzia a um êxtase, e a alma se cobria de um luxo radioso de sensações!”

Eça de Queiroz, em "Primo Basilio"
Escutava MM e Eça. Lembrei de vir aqui agitar