quarta-feira, 27 de outubro de 2010

História do Cerco de Lisboa - José Saramago.


O limite que separa escrita de ficção da escrita que se afirma como verdade é tão sutil que às vezes fica difícil dizer quando se trata de uma e quando se trata de outra. Sabemos, por exemplo, que um romance é um romance porque olhamos nos dados de catalogação do livro, ou porque vem escrito na capa embaixo do título, ou porque conhecemos o autor, etc. Há livros, no entanto, que sem termos um conhecimento prévio de sua classificação, poderiam nos gerar as mais desconfortáveis dúvidas. Nesse sentido, há muito livros de História que poderiam ser lidos como ficção. Há inclusive uma tendência moderna de se contar a História nos moldes de uma narrativa tradicional. E há muita escrita de ficção que poderia ser lida e entendida como História (sim, leia-se História com H maiúsculo). Poderia citar vários exemplos. Ao invés disso, se agucei a curiosidade de alguém que me lê, sugiro que procure na livraria (ou na biblioteca) algo classificado como romance histórico, entenderão melhor o que exponho. Essa problemática da escrita que se afirma como ficção e da escrita que se afirma como verdade não é algo novo. Há diversos textos acadêmicos que tentam dar conta do recado. Ou se quisermos ser mais específicos, pensemos em muitos textos que a literatura acolheu e que não são ficção. Basta pensarmos nos primeiros séculos de Brasil, em que chamamos literatura a carta de Pêro Vaz de Caminha, e uma variedade sem fim de documentos que mais interessam à historiografia do que propriamente à literatura, isso sem falar da prosa doutrinária. Isso só nos mostra quão tênue é a linha que separa ficção de realidade. E é essa linha tênue que da origem a um dos romances mais inteligentes e bem escritos da literatura: História do Cerco de Lisboa. Nesse romance, Saramago joga com a arte do fazer literário quando nos presenteia com um personagem que resolve alterar a escrita que se afirma como verdade. Raimundo Silva, um revisor de uma editora, um dia em que está terminando de revisar um livro que conta a História do cerco de Lisboa, sem explicações lógicas resolve meter um não em lugar de um sim. O resultado? Uma História diferente. A partir daí, o escritor português nos convida a adentrar em um mundo onde ficção e realidade se misturam e se completam. Típico de Saramago, o livro levanta questões interessantíssimas e perturbadoras. E se aquilo que concebemos como verdade não for a verdade? E o que vem a ser de fato verdade? E como seria o mundo hoje se a História tivesse sido diferente? A literatura de Saramago, que não está aí para responder questões, mas para levantá-las, nos leva a pensar no poder da escrita, tanto da que se quer verdadeira, como da de ficção, e acompanhamos, ao lado de Raimundo Silva, o confeccionar dessas duas escritas. Raimundo (por motivos que não coloco aqui para não estragar a leitura de quem ainda não se deliciou nas páginas do romance) se atreve a criar um romance de ficção, e ao fazê-lo, acaba criando uma nova História. Inteligente, ousado, mágico e perturbador (e por que não dizer lindo também?), o romance afirma (no meu caso reafirma) que Saramago fez jus ao Nobel de Literatura que ganhou. História do Cerco de Lisboa não é meu romance preferido de Saramago, mas é, a meu ver, um dos textos mais inteligentes da Literatura.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

A Igreja do Diabo e Outros Contos - Machado de Assis.


O homem que morre sem ler Machado de Assis morre duas vezes. Machado é um autor que não canso de reler. E a cada releitura algo novo surge. Nessa minha releitura de A Igreja do Diabo e Outros Contos, que traz alguns dos contos de Histórias Sem Data (1884), Machado me mostra porque é um dos meus escritores preferidos. Seu olhar irônico e cruel sobre a sociedade é ainda mais fascinante nos contos do que nos romances. Pela sua extensão mais breve, temos nos contos de Machado maior lirismo, e seu humor peculiar me parece melhor explorado. Através de estórias breves as máscaras humanas são reveladas, e Machado traz aquilo de mais podre que o homem guarda. Crítico sutil do homem e da sociedade, nosso mestre da literatura soube fazer com maestria o que poucos conseguem: denunciar com estilo. Com muito estilo.

domingo, 17 de outubro de 2010

Outra Volta do Parafuso - Henry James.


Para os que gostam de um romance que mistura terror e suspense, Outra Volta do Parafuso, de Henry James é um prato cheio parar se deliciar. A escrita ágil de Henry James é digna de mérito, pois prende até um leitor desinteressado por esse tipo de estória: eu, por exemplo. Uma jovem preceptora aceita a proposta de cuidar de duas crianças em uma casa em que dois fantasmas aparecem para ela. A escrita de James faz com que o jogo entre realidade e imaginação mantenha o leitor atento e cúmplice. A ambigüidade é muito bem trabalhada, criando um clima de incertezas, de desconfianças, de dúvidas. Por se tratar de um romance de suspense não irei eu estragar o final, nem o meio, nem mesmo o começo, pois ele todo é suspense do começo ao fim. Aos que se sentirem estimulados, boa leitura.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

São Bernardo - Graciliano Ramos


É prática recorrente na literatura alguém contar suas memórias para tentar convencer-se de alguma coisa. Os exemplos são vários. Podemos citar Riobaldo de Grande Sertão: Veredas, que conta sua história na tentativa de entender se houve ou não o tal pacto com o diabo. Exemplo mais famoso em nossa literatura, Bentinho, nosso Dom Casmurro, tenta convencer a si mesmo da traição de Capitu, e narra suas memórias com um enredo perigosíssimo, e espera no leitor um cúmplice que concorde com seu ponto de vista. Mas para mim, nenhuma memória se compara as de Paulo Honório, de S. Bernardo. Segundo romance de Graciliano Ramos, S. Bernardo narra a vida no campo sob o prisma do dominador. É sob o olhar de um homem rude, grosseiro, impetuoso e por vezes malvado que nos chega a narrativa. Depois de acontecimentos que o marcam profundamente, Paulo Honório decide escrever um livro. A princípio tenciona fazê-lo em grupo. Frustrada essa tentativa decide ele mesmo, homem sem estudo, compor as suas memórias e deixá-las impressas no papel. O resultado é uma narrativa em que a língua falada se mistura à língua escrita de maneira deliciosa, numa prosa que traz aquilo de mais universal que existe na literatura: a condição do ser humano. Paulo Honório batalha a vida inteira para conquistar e manter a posição social almejada, e o saldo dessa luta é lindamente descrito no último capítulo do livro. A condição de Paulo ultrapassa os limites do nordeste brasileiro, pois suas memórias, além da descrição da vida no campo, é a descrição de vidas. De vidas simples com toda sua complexidade. Paulo Honório recorre à pena para convencer-se de que tudo o que fez valeu a pena. Acredito que S. Bernardo seja a memória mais bem escrita que já li. Se não for, pelo menos é, sem dúvida, a que mais me tocou.

sábado, 9 de outubro de 2010

O falecido Mattia Pascal - Luigi Pirandello


O homem é aquilo que ele de fato quer ser? Será que no fundo não passamos de um conjunto de convenções sociais, culturais, políticas e religiosas? É essa questão, a da identidade, que aparece no romance O falecido Mattia Pascal, de Luigi Pirandello. Mas além da questão da identidade, o romance mostra quão utópica pode ser a liberdade a que tanto aspiramos. Mattia é um homem que se vê levado pelas circunstâncias a viver uma vida que o angustia tanto a ponto de fazê-lo fugir de sua esposa e sogra. Durante sua fuga, alguém em sua pequena cidade morre, e na volta, a caminho de casa, Mattia descobre que o corpo identificado como morto é o seu. Diante da possibilidade de ser outra pessoa, Mattia então se aventura por novos horizontes com seu novo eu, e é a partir daí que o conflito da identidade começa a nascer. Quem ele é agora? De repente nosso personagem descobre que não pode ser o homem que gostaria de ser se não obedece a certas “regras” sociais. A felicidade a que tanto aspira se vê comprometida por não fazer parte da sociedade, afinal, ele está morto legalmente. Com um texto em que a ironia se faz sempre presente, Luigi Pirandello nos faz pensar no papel do homem na sociedade, em sua liberdade e até na própria vida. O romance mostra as máscaras que devemos vestir se queremos fazer parte do mundo. Ganhador do Nobel de literatura, Pirandello é um dos autores indispensáveis pra quem pretende entender um pouco das máscaras que levamos enquanto vivemos. Vistamos as nossas.